O trabalho nosso de cada dia


INTRODUÇÃO

Você continuaria trabalhando se ganhasse 1OO milhões de reais? A grande maioria diria um NÃO em alto e bom som. Porque muitos brasileiros não querem mais sentir aquela pertubação nos fins de noite de domingo, quando termina o "Fantástico" e se deparam com a volta a realidade. Este conflito se faz quando a anestesia do descanso e do entretenimento do fim de semana acaba para encararmos mais uma vez a rotina semanal de trabalho duro. E isso não poderia ser diferente. A palavra trabalho vem do latim "tripallium" que significa literalmente “instrumento de tortura e castigo”. É por isso que muitos brasileiros apostam suas economias nas loterias com a esperança de se tornarem milionários pelo resto de suas vidas e nunca mais precisarem ser torturados pelo trabalho a fim de se sustentarem.

E como seria viver sem trabalhar? Qual o significado e o sentido do trabalho em nossas vidas? A vida sem trabalho se torna num cotidiano de tédio, ócio e desvalorização do potencial humano na vida em sociedade. Mas trabalhar promove dignidade humana, realização pessoal, sentido existencial e progresso social. Trabalhar é o instrumento de Deus para por ordem no caos do mundo sem Deus. É tornar mais facil as relações sociais. É promover a justica, a igualdade, a solidariedade e fraternidade. Se não acreditarmos nisso, nossa única saída será nos enterrarmos num niilismo existencial com cinismo, ceticismo e desdém pela nossa vida e pelo mundo ao nosso redor. Nenhum dinheiro no mundo poderia comprar os eternos valores morais e espirituais que o trabalho pode preencher na alma humana, porque são valores inerentes a natureza humana e a vida social. Ou seja, somos mais humanos quando trabalhamos.

Para entendermos melhor o significado do trabalho, ouse perguntar a três pedreiros o que eles fazem e eles dirão respostas bem diferentes. O primeiro deles poderá dizer que está trabalhando apenas para ganhar dinheiro e sobreviver. O outro dirá que não sabe fazer outra atividade, a não ser assentar tijolos e construir paredes. E ainda, o último poderá dizer que está construindo a cidade que seus filhos vão morar. Seja por dinheiro, vocação ou cidadania, o seu trabalho vai encontrar mais dignidade, motivação e sentido quando você tiver um conceito mais elevado do significado do seu trabalho para sua vida e para as pessoas que te cercam. Por isso, é necessário entendermos mais sobre o sentido e o significado do trabalho em nossas vidas.

A REFORMA DO TRABALHO E O TRABALHO DOS REFORMADORES

Desde muito tempo, a tradição crista do catolicismo romano considerou o trabalho como castigo de Deus e um mal necessário. Evidente que depois da queda do homem, a lógica da criação foi alterada, porque todo o cosmo ficou desfigurado e desequilibrado. Depois da queda, o homem passou a trabalhar duro para tirar da terra seu sustento que antes era dado sem maiores esforços (Gn 3.17-19). Mas, com a reforma protestante do século XVI, os reformadores protestantes entenderam que a Bíblia nos diz que o trabalho foi dado por Deus, mesmo antes da queda. A Bíblia nos diz que o primeiro casal foi responsável pela administração, cuidado e preservação do jardim. E a Adão foi dado o trabalho de dar nomes aos animais (Gn 1.26b, 28 – 30 e 2.15, 19e 20). O jardim era a casa e o ambiente de trabalho do primeiro casal. O trabalho foi dado por Deus ao homem como algo bom, reto e justo (Gn 1.31). Além disso, o trabalho manifestava e desenvolvia o potencial das faculdades do homem, a preservação da vida social e da criação. E toda a herança protestante passou a enxergar o trabalho como um serviço a Deus e como um instrumento de Deus para por ordem no caos do mundo sem Deus. Assim, o trabalho revela (1) nossa identidade, (2) nossa adoração a Deus, e (3) nossa missão no mundo.

1. NOSSA IDENTIDADE

Sabendo que o trabalho é uma dádiva de Deus e que é inerente a vida humana individual e social, podemos dizer que o trabalho é a expressão da imagem de Deus no homem e na sociedade. Fomos criados como uma cópia de Deus (Gn 1.26, 27). Isso quer dizer que fomos criados com algumas características de Deus doadas a essência de nosso ser. Logo, podemos dizer que o trabalho é uma experiência da manifestação do desenvolvimento do potencial humano. Trabalhar é expressar e desenvolver talentos e aptidões. É canalizar o que somos, o que sabemos e o que fazemos servindo as pessoas ao nosso redor. É trabalhando que nossa identidade emocional, social, intelectual e espiritual se constrói convivendo em sociedade. Enquanto isso, nossa biografia vai sendo escrita quando as pessoas testemunham de nosso serviço, identidade e produtividade em prol da comunidade. Em resumo, a imagem de Deus no homem se manifesta no trabalho.

A nossa identidade como imagem de Deus deve ser uma das maiores motivações para acordarmos cedo na segunda-feira e mostrarmos Deus trabalhando no mundo. Quando criamos, organizamos, analisamos, desenvolvemos, produzimos, projetamos e comunicamos estamos manifestando todo o potencial humano que temos da imagem de Deus em nós. Isso implica dizer que quando nosso trabalho manifesta o belo, a lógica do raciocínio científico, o progresso tecnológico, a sensibilidade, a intuição, as relações pessoais, a preservação ecológica, a ética, a transcendência espiritual, a vontade de superar limites, as aptidões e talentos inatos e a força física revelamos Deus trabalhando em nós e conosco no mundo. Assim, todas as nossas características bio-psico-sócio-espiritual é um milagre da imagem de Deus no homem.

Quando reconhecemos que nosso trabalho revela nossa identidade, podemos encarar nosso trabalho como uma forma de realização humana ao expressar o melhor de nós mesmos para o próximo na promoção do bem comum. Assim, o trabalho passa de, simplesmente, um compromisso de bater o cartão de ponto numa organização ou somente a busca por sustento financeiro, ou de uma busca individual de uma carreira profissional de sucesso, e passa a ser nossa identidade existencial e social. E, a partir do conceito da imagem de Deus no trabalho, as atividades profissionais da semana passam a ser executadas com muito mais prazer, responsabilidade e sentido.

2. NOSSA ADORAÇÃO A DEUS

O catolicismo medieval entendia que o serviço a Deus se resumia exclusivamente a uma vida dedicada ao ministério monástico e as ordens sagradas da igreja. O trabalho era visto como atividade física, não digna, algo inferior, secular, profano, atividade dos servos e do povo. Logo, o clero e a nobreza dedicavam-se a outras atividades mais “nobres” e intelectuais que não houvesse nenhum tipo de esforço físico. Por isso, não havia interesse algum no trabalho por parte da igreja e da nobreza. Mas, ao entender que o trabalho foi uma dádiva de Deus e revela nossa identidade, os reformadores protestantes elaboraram a teologia bíblica do sacerdócio universal dos crentes; ou seja, o conceito bíblico de serviço cristão engajado no mundo através do trabalho. Servir a Deus era estar no mundo, vivendo engajado em todas as realidades do cotidiano para a transformação social e para glória de Deus. A igreja passa a ser agência de transformação histórico-social e cada crente passa a ser vocacionado para servir a Deus com sua ocupação, ofício e profissão. Ou seja, um sapateiro, um ferreiro, um lavrador, um mecânico servem a Deus da mesma forma que um sacerdote e um bispo ordenado. Porque agora, todo crente tem acesso a Deus por meio de Cristo, através da leitura da Bíblia e das suas próprias orações. E assim, todo crente, independente de sua profissão, pode servir a Deus engajado no mundo. O trabalho passa a ser visto como uma atividade digna do homem, forma de glorificação a Deus e sinal de salvação.

Quando lembramos da doutrina do sacerdócio universal dos crentes, percebemos o quanto essa doutrina tem sido esquecida pela igreja. É fácil perceber o dilema de crentes que desejam servir a Deus na igreja local, mas dizem que são impedidos pela necessidade do ganha pão através do trabalho secular. Muitos pedem a Deus para sair do emprego afim de se dedicarem mais tempo as atividades da igreja-templo. Esse dilema é resultado da herança do catolicismo medieval que ainda carregamos. Hoje, nossa idéia de serviço cristão se resume às atividades na igreja-templo-denominação durante as liturgias dos cultos dominicais. Até mesmo nossa adoração e serviço a Deus tem sido resumido a cultos em ajuntamentos. Não conseguimos enxergar que nossa adoração e serviço a Deus podem ser realizados nas atividades do nosso cotidiano ambiente de trabalho. E muito menos, conseguimos enxergar nosso ambiente de trabalho como campo missionário.

O trabalho deve ser encarado como uma atitude de adoração a Deus. Deve ser um culto cotidiano no ambiente de trabalho enquanto realizamos nossas atividades profissionais. Nosso trabalho deve ser a oferta que brota de nosso coração de tudo o que somos e o que fazemos para Deus e para o próximo. E na medida que trabalhamos, nós progredimos em nossa jornada do crescimento pessoal quando revelamos a expressão da imagem de Deus em nós. Pois, quanto mais criativos, laboriosos e úteis, mais cresceremos na experiência do caráter de Cristo. Assim, trabalhar se torna um culto espiritual a Deus tanto quanto um culto de adoração no templo.

3. NOSSA MISSÃO NO MUNDO

Nosso serviço a Deus deve ser intramundo. Ou seja, devemos viver engajados nas realidades do mundo que nos cercam e conviver e servir as pessoas fora dos corredores eclesiásticos. Porque nosso trabalho tem a função de cooperar com Deus para colocar ordem no caos e para a redenção do universo. Ou seja, quando trabalhamos estamos mostrando Deus trabalhando no mundo. Nosso trabalho é a manifestação da providência de Deus em preservar a criação, as relações sociais e nossa identidade como seres humanos. O trabalho nosso de cada dia se torna espiritual quando encaramos nosso serviço como nossa missão no mundo, a medida que distribuímos amor, riqueza e recursos de Deus para todos através de todos.

Nosso trabalho deve sinalizar o Reino de Deus que está em nós e entre nós. E por Reino de Deus não podemos entender que significa exclusivamente igreja-templo-clero-domingo-culto. Por Reino de Deus devemos entender que é o domínio soberano de Deus sobre toda sua criação, já inaugurado na vida histórica de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo de Nazaré, com a finalidade de destruir o mal, libertar o homem do pecado e salvá-lo para desfrutar das bençãos do governo de Deus sobre todo o universo. Mas, o Reino de Deus ainda não chegou em toda a sua plenitude. Ainda o mundo jaz do maligno e muitas pessoas estão presas no Reino das trevas. O Reino de Deus terá sua manifestação plena na segunda vinda de Cristo na terra para buscar os que são seus. E porque o Reino de Deus já veio em Cristo, oramos para que “Venha o teu Reino e seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, uma vez que ainda não veio plenamente. Mas, em breve virá. Maranata! Enquanto isso, buscamos o reino de Deus e a sua justiça (Mt 6.33) quando priorizamos nosso trabalho como parte de nossa missão no mundo de sinalizar o Reino de Deus entre nós, através de nossa profissão.

O trabalho no Reino de Deus deve ser uma denúncia profética contra o mal do modo de produção econômica do capitalismo selvagem. Nosso trabalho no Reino de Deus não deve cooperar com o surgimento da nobreza econômica que explora e oprime seu proletariado e promove a injustiça social e a má distribuição de renda em nosso país. É trágico diagnosticar que no cenário evangélico brasileiro temos uma nobreza de irmãos empresários que dominam e subjugam seus dominados-funcionários-irmãos que dominicalmente cultuam no mesmo templo e semanalmente lutam entre si no ambiente de trabalho. Infelizmente, a igreja evangélica perdeu sua denuncia profética e tem embarcado na mentalidade capitalista quando ascende a desigualdade social dentro da comunidade cristã.

Mas a doutrina cristã do trabalho diz que o trabalho glorifica a Deus quando distribui riquezas e recursos de Deus para todos e através de todos. O trabalho no Reino de Deus não tem espaço para exploração de empregados nem desigualdade social. Isso me faz citar o Rev. Robinson Cavalcanti quando diz que “Deus não criou o emprego, mas o trabalho, e nos manda ganhar o nosso sustento com o nosso próprio suor, e não com o suor do próximo, em um modo de produção em que todos, e cada um, seja senhor do seu corpo, do seu tempo, do seu talento e dos seu meios ou instrumentos”. E tudo seja para transformação social e glória de Deus. Utopia? Não. O Reino de Deus é uma utopia possível. Mas, o que não podemos é nos conformar com este século de exploração capitalista (Rm 12.2) e cair na exploração do potencial humano como meio de lucro dos poderosos e destruir a dignidade humana com a desigualdade social.

O trabalho no Reino de Deus é mais do que serviço de caridade. Quando nosso trabalho é feito em nome de Jesus, sinalizamos o Reino de Deus como instrumento de arrependimento dos pecados. Arrependimento é mudança de consciência, cosmovisão e atitude. Por isso, nosso trabalho deve levar as pessoas ao arrependimento quando revela os valores eternos do Reino de Deus e os confronta como nossas atitudes profissionais pecaminosas. Ou seja, os engenheiros civis cristãos poderiam construir cidades dignas de se viver enquanto denunciam a desigualdade social e criam meio de acabar com as favelas. Os advogados cristãos condenariam o jeitinho brasileiro de burlar as leis de nosso pais criando leis com valores de justiça do Reino de Deus. Os jornalistas cristãos dariam suas notícias como uma voz profética do Reino de Deus em vez da exploração da banalização e da glamourização da maldade humana. Os empresários cristãos fariam um pacto de ética para valorizar mais o ser humano do que o modo de produção capitalista selvagem quando geram empregos com salários e condições de trabalho dignos. Os metalúrgicos cristãos fabricariam sem contaminar o meio ambiente. Os políticos cristãos administrariam as cidades com laicado religioso, mas com os valores do Reino de Deus, como honestidade, justiça e serviço. E o que sugerir a professores, médicos, pedreiros, esportistas, bancários, mecânicos e etc? Todo trabalho realizado como um serviço a Cristo há que beneficiar o próximo e funcionar como um sinal do Reino de Deus. Assim, Jesus poderá nos dizer: "Tive sede e você me deu de beber; fome e você me deu de comer; estive preso e você me visitou; sem moradia e você me deu terra para plantar; sem horizontes e você me deu crédito; explorado e você foi meu advogado; era analfabeto e você me alfabetizou; fiquei doente e você me operou; estava na fila e você me atendeu com dignidade; senti dor e você me sedou; desempregado e você me deu oportunidade de trabalho; triste e você me fez rir; chorando sozinho e você chorou comigo, alegre e você cantou pra mim, sonhando e você me trouxe o esporte...” Assim, nossa profissão e nosso jeito de trabalhar devem ser boas obras que levem o mundo sem Deus ao arrependimento de suas obras más. Somente assim, os homens verão nossas boas obras e, certamente, glorificarão nosso Pai que está nos céus. E Jesus Cristo, no rosto dos necessitados, nos abençoará e receberá toda nossa vida, adoração e serviço.

CONCLUSÃO

Trabalhar é mais do que a busca por dinheiro. É ser mais humano a medida que expressamos a imagem de Deus através de nosso potencial. Trabalhar é uma liturgia cotidiana de adoração a Deus que brota de nosso coração quando revelamos em nós, Deus trabalhando através de nosso serviço às pessoas enquanto crescemos a imagem de Cristo. Trabalhar é nossa missão no mundo de cooperar com Deus na sua missão de redimir o mundo sem Deus. Assim, nesta próxima segunda feira, quando você acordar e for trabalhar, olhe no espelho e veja um trabalhador de Deus mostrando ao mundo toda a sua glória através da tua profissão. E se um dia, você ganhar muito dinheiro, saia do emprego, mas não pare de trabalhar. Que a nossa vida seja viver para Deus em prol das pessoas enquanto trabalhamos no mundo sem Deus. Amém?

Jairo Filho

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