A grande omissão

Era uma vez uma ilha paradisíaca rodeada por um mar bravo e perigoso; habitada por uma vila de pescadores.

Conta-se que estes pescadores eram bons trabalhadores, amigos uns dos outros, conservavam um caráter impecável, valorizavam e preservavam a natureza e a vida em comunidade.

Tudo corria muito normal, até que em um dia pacato, surge uma notícia urgente que abalou a rotina dos pescadores:

- "Aconteceu um naufrágio! Aconteceu um naufrágio! Tem muita gente ferida se afogando. Vamos ajudá-los". Gritou um pescador desesperado.

Sem pestanejar, todos os pescadores unidos foram ajudar os sobreviventes daquele terrível naufrágio engolidos pelo mar bravo daquela ilha.

No fim das contas, aqueles simples nativos se transformaram em heróis ao pescarem os feridos e afogados com muito sucesso. Após esse salvamento, os pescadores reconheceram que sua missão na vida era de resgatar náufragos daquele mar perigoso.

Então, os pescadores se reuniram e resolveram se preparar e se organizar melhor para um outro possível naufrágio.

E foi isto mesmo que aconteceu: um outro naufrágio apareceu. E os pescadores, agora de plantão, preparados e organizados, se lançam ao mar para pescar as pessoas engolidas pelas ondas. Com muito mais rapidez e eficiência, o resgate é feito com muito mais sucesso do que o anterior. E esse resultado contagia todos os pescadores com muita alegria, pois confirma mais ainda a missão que eles receberam da vida.

Animados com o sucesso dos resgates que fizeram, os pescadores decidem construir uma casa que servirá de pronto socorro e escola para treinar novos pescadores salva-vidas. E assim, eles fazem uma arrecadação mensal para cobrir as despesas da construção e manutenção dessa casa de salvação.

Depois de algum tempo, a casa de salvação está pronta. Chega o dia da inauguração. Quando todos estavam apostos para cortar a faixa inaugural, surge, de repente, a notícia de mais um naufrágio.

O desespero e a indecisão tomam conta de todos. O desespero pela emergência do resgate e a indecisão para saber se continuam ou não com a inauguração. Diante desse impasse, uns decidem continuar a tão esperada inauguração para depois fazer o resgate. E assim, demoram tanto para entrarem no mar que a salvação dos náufragos não tem o mesmo sucesso que as anteriores. Apesar do resgate ter sido feito, alguns náufragos chegam à praia com muitos ferimentos graves, e, como conseqüência da demora do resgate, morrem agonizando de dor nas areias da ilha.

Esse episódio comove muitos pescadores. Como conseqüência disso, é feita uma reunião para apurar os culpados pela omissão do resgate.

Após a apuração dos fatos, bem no fim da reunião, fica decidido sobre a necessidade de eleger uma diretoria da missão dos pescadores para tomar as medidas cabíveis diante de importantes decisões.

Para a felicidade de todos, no outro dia, os pescadores se reúnem mais uma vez para a eleição da diretoria da missão. E no fim desse mesmo dia, a diretoria é eleita com uma grande festa numa balada que dura a noite inteira.

Como parte do primeiro mandato, o presidente da missão e toda a diretoria fazem um novo programa de treinamento e capacitação para novos pescadores. Eles promovem conferências e congressos, criam mais departamentos de finanças, reformam a casa da salvação construindo mais salas, gastam muito dinheiro comprando ar-condicionado, mesas e cadeiras confortáveis, computadores sofisticados de ultima geração, muito material supérfulo para escritório, gastam muito tempo em reuniões criando um regimento interno complexo e legalista, e promovem mensalmente festas comemorativas de confraternização dos funcionários.

Certo dia, em uma determinada reunião burocrática da instituição, os pescadores-executivos receberam mais uma notícia de um naufrágio. Quando souberam do naufrágio, a diretoria decidiu que seria muito arriscado entrar no mar naquela hora. O secretário de obras tomou a palavra e se desculpou dizendo que a casa da salvação estava muito limpa e organizada e as pessoas feridas iriam sujar tudo. Se a casa da salvação receber gente imunda vai acabar com os planos de fazer uma nova plástica e lipo nas paredes novas da casa. O escrivão se justificou dizendo que era necessário ter ordem no processo de entrada dos náufragos na vila; e, naquele momento, já tinha passado seu expediente de trabalho.

Além disso, enquanto acontecia o naufrágio, toda a equipe de resgate estava dispersa ocupada no vício do ócio burocrático das desculpas. Os profissionais de saúde estavam de braços cruzados se preparando para a festa de logo mais a noite. Os salva-vidas estavam fazendo natação e musculação a fim de aprimorar seus músculos no espelho narcisista. Os pilotos dos barcos estavam brincando de desmontar o motor do barco, enquanto os motoristas das ambulâncias estavam no lava-jato numa competição de limpeza. Os alunos do treinamento de salva-vidas estavam na biblioteca fazendo uma pesquisa para a sua tese de final de curso. E os demais voluntários do resgate estavam desocupados experimentando a melhor fantasia para a festa de logo mais.

Enfim, a história termina com o mais trágico naufrágio de todos os tempos. Os feridos que conseguiram chegar à praia morreram agonizando de dor à espera de socorro. No fim de tudo, ninguém sobreviveu.

Aqueles simples pescadores, amantes do mar e da vida, trocaram o barco, os remos e as redes, pela burocracia dos papéis inúteis da institucionalização.

A casa da salvação se transformou na casa da omissão.

Qualquer semelhança com a igreja evangélica não é mera coincidência.


Em Cristo, que resgatou homens pecadores para torná-los pescadores de homens.

Jairo Filho.

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